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04/05/2024

O jogo dos princípios e o conhecimento sobre a Psicologia

Tenho boas lembranças das minhas aulas de geometria no ensino fundamental e médio. Minha formação matemática naquele período foi cuidada pelos gênios “irmãos Couto”, Jorge e Luciano, e depois pelo gigante Roberto Daroz. Tive mais professores de geometria no finado pré-vestibular, igualmente bons, embora menos presentes. Me recordo que acertei 14 das 15 questões de matemática no vestibular, então não tenho nada a reclamar.

Há uma questão epistemológica originada na geometria que se manifesta em discussões de muitas áreas, tais como filosofia da ciência, construção de teorias, modelagem computacional e desenhos experimentais. O assunto é milenar e está entrelaçado à história das civilizações, da filosofia grega e da história da arte contada segundo os cânones ocidentais. Na minha época do ensino médio, nunca foi abordado diretamente, apesar de funcionar como a “música de fundo” de todas as aulas de matemática. Acredito que as escolas de hoje tenham trazido o tema para o primeiro plano, dada sua importância para a educação matemática e para a vida futura (e computacional) dos estudantes.

Ponto, reta e plano. Semirreta, semiplano. Paralelismo, concorrência, coincidência. Ângulos congruentes, retos, agudos, obtusos, complementares, suplementares. Bissetrizes, ângulos opostos pelo vértice. Polígonos, côncavos e convexos... Das ideias mais simples aos problemas mais interessantes da geometria, a progressão segue uma estrutura particular introduzida pelo próprio Euclides de Alexandria (300 a.C.). No primeiro contato com este processo, pode parecer que a opção de se iniciar a exposição da geometria pelas entidades mais simples decorre de abordagem didática, visando facilitar a vida dos estudantes.

“A Escola de Atenas” (1509-1511), de Rafael Sanzio (1483-1520). Euclides aparece no canto inferior direito, lecionando geometria com um compasso (Wikimedia).

O que ocorre é que a construção progressiva dos fundamentos da geometria foi uma das grandes contribuições dos Elementos de Euclides para a matemática, para as ciências e para a humanidade. Após quase 30 anos fora da educação básica, estou redescobrindo a beleza do pensamento euclidiano, conhecendo seus interlocutores na história recente e explorando suas encarnações atuais. Antes de falar do presente, vamos abordar o que há de belo na concepção original.

As entidades matemáticas que citei acima pertencem a diferentes níveis de abstração do sistema de Euclides. Aprendemos temas mais complexos depois de dominar (ou quase) tópicos mais elementares. Para refrescar a memória, lembre-se de que vamos do ponto à reta e ao plano, ou dos segmentos de reta consecutivos às linhas poligonais, e destas aos polígonos. Mas o que significa ir “do ponto à reta e ao plano”? O que a qualidade de ser “consecutivo” implica aos segmentos de reta para obtermos “polígonos”? O que é “ponto”, “reta”, “plano”, “segmento” e assim por diante?

O filósofo argentino Alejandro Cassini, da Universidad de Buenos Aires, denominou esta empreitada como “o jogo dos princípios”. A intenção de sistematizar corpos tão amplos de conhecimentos a partir de entidades elementares esbarra na regressão infinita, uma vez que sempre podemos perguntar “o que é X?” após ouvirmos que “dois X definem um Y”. Em outras palavras, o desafio é declarar precisamente um conjunto finito de entidades, suficiente para o funcionamento coerente do sistema, a partir das quais outras ideias mais avançadas possam se assentar.

“Oxyrhynchus papyrus” com fragmentos do Postulado 5 do Livro II dos Elementos, de Euclides (Wikimedia). Detalhes e traduções no site de Bill Casselman (UBC).

A solução de Euclides foi estabelecer suas fundações sobre definições, postulados e noções comuns ou axiomas. Assumimos que estas fundações são verdadeiras sem prova ou demonstração e vamos em frente. Obviamente, encontramos termos na constituição desses elementos primitivos que poderiam ser objeto de definição – p.ex., “é parte de”, “contém” – e o caminho é assumir o sentido corrente e consensual deles na linguagem. Este problema, para mim, é um dos mais interessantes, principalmente nas ciências empíricas que lidam com entidades nem sempre observáveis diretamente. Afinal, o que é crença? O que eu estou fazendo quando digo que estou pensando? Como definimos um grupo? Pois é.

Partindo daquelas fundações precisamente definidas, pode-se gradualmente aumentar a abstração, deduzindo-se as consequências lógicas das relações entre aqueles entes. A denominação desta construção nos últimos séculos foi denominada “axiomatização”. Atualmente, postulados e axiomas são empregados de modo intercambiável (não sem debate), correspondendo às noções primitivas do sistema, que são utilizadas na construção de teoremas e de suas respectivas provas.

Para ilustrar o que vejo de belo na axiomatização, tomarei dois extremos de um percurso: o ponto e um polígono, tal como o paralelogramo. A compreensão intuitiva dessas duas entidades oculta o imenso esforço intelectual para se definir com precisão aquilo que nos parece trivial. Utilizarei a edição da Editora da Unesp, traduzida do grego para o português por Irineu Marinho, mas você pode conferir texto semelhante na versão dos Elementos disponível em domínio público. Indico entre parênteses Dx e Px, em que D é uma definição e P um postulado de número x no Livro I de Euclides.

No Livro II, chegamos à definição do “paralelogramo”, apoiada nas definições e postulados do livro anterior: “todo paralelogramo regular é dito ser contido por duas retas que contêm o ângulo reto”. Esta sentença depende, quase totalmente, do conjunto de definições e postulados do Livro I, exceto pelas relações assumidas implicitamente: “é contido” está relacionada à ideia de fronteira (D14 e D19), enquanto a noção lógica e aparentemente intuitiva de “todo” seria desenvolvida pelos quantificadores universais séculos mais tarde.

Mais concretamente, dizer que “X existe e tem a propriedade Y”, ou que “para todo X que existe, há tal propriedade Y definindo sua existência”, não é tão simples quanto a linguagem verbal sugere. Para tanto, Euclides aborda centenas de provas nos Elementos, antecedendo em séculos a prática dos matemáticos “modernos” (isto é, aqueles abordados na educação básica) de apresentarem provas rigorosas de seus argumentos, procedendo por deduções a partir das premissas iniciais, como se fosse uma exposição dialogada com interlocutores céticos (reais ou imaginários). Há um livro espetacular na minha lista de leituras sobre este tema, escrito pela filósofa brasileira e radicada na Holanda Catarina Dutilh Novaes. Espetacular e premiado.

Catarina Dutilh Novaes no HH Filosófico do Costa Mattos (YouTube)

Por fim, as noções comuns (NCx) apresentadas no Livro I dos Elementos são fundamentais para muitos problemas lógicos da medida nas ciências empíricas. Arrisco o palpite de que nenhum texto introdutório sobre teoria da medida, psicometria e modelagem de escolhas individuais ou sociais pode prescindir da exposição axiomas tais como “coisas iguais à mesma coisa são também iguais entre si” (NC1), “caso sejam adicionadas coisas iguais a coisas iguais, os todos são iguais” (NC2). A célebre afirmação de que “o todo é maior que a parte” (NC8) também está declarada no Livro I.

As práticas de modelagem matemática e computacional são herdeiras desses esforços de axiomatização, assim como os fundamentos da Psicologia Matemática. Voltando (quase) ao presente, existe uma discussão iniciada no final dos anos 1970 na Psicologia, que não me parece tão popular atualmente, sobre o status epistemológico do conhecimento da área. Em linhas gerais, diz respeito à possibilidade de uma psicologia teórica que avança no conhecimento sobre as funções psicológicas sem demandar, necessariamente, pesquisas empíricas. Seria algo como uma visão positiva da “psicologia de gabinete”, que poderia ser feita sem “ir lá fora” investigar o mundo empiricamente para fundamentar a prática. Em inglês, dizemos armchair Psychology ou (mais frequentemente) armchair Philosophy, onde a crítica tornou-se mais severa.

Detalhe Platão e Aristóteles, na "Escola", de Rafael Sanzio.

As disputas envolvem as distinções entre conhecimento a priori e a posteriori, analítico e sintético, verdades necessárias e verdades contingentes, racionalismo e empirismo, o positivismo lógico e seus críticos, e têm raízes tão profundas quanto o desacordo entre Platão e Aristóteles, figuras centrais retratadas por Rafael Sanzio na “Escola”. Nas variadas interpretações que li do afresco, Platão aponta para cima com a mão direita, fazendo referência ao racionalismo e às verdades possíveis de serem conhecidas a partir das ideias, enquanto o gesto da mão direita de Aristóteles indicaria a conexão com a realidade física, recorrendo aos dados da experiência como única forma de se conhecer o que existe. Pode não ser nada disso, mas é um baita parênteses lúdico para aulas de filosofia ou de história da arte.

Para quem tiver curiosidade e não tiver paciência para aguardar futuras publicações sobre o tema neste blog (ou em artigos “no forno”), há duas referências que considero essenciais sobre o assunto: Jan Smedslund, professor emérito do Departamento de Psicologia da Universidade de Oslo; e André Kukla, professor emérito da Universidade de Toronto, falecido em dezembro de 2023.


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