UI is not pre-AI
Versão curta do problema (resumo de inteligência natural para os apressados)
A afirmação do tweet acima está errada em muitos sentidos e eu selecionei três para explicar meu ponto de vista: 1) está errado quanto ao que é uma interface; 2) faz leituras pobres e reducionistas sobre a cognição; e 3) extrapola as capacidades de IA para além dos fatos.
Versão em vídeo do problema
Versão longa do problema
A vida dos professores na era das inteligências artificiais é miserável. Todo santo dia precisamos rebater afirmações apocalípticas sem lastro na realidade feitas por mercadores do fim do mundo, sem ignorar a gravidade das mudanças em curso e que podem afetar o futuro dos nossos alunos. Este texto é mais um episódio dessa saga e meus objetivos são principalmente didáticos.
...
Naval Ravikant é uma personalidade do mundo dos investidores-empreendedores que, provavelmente em razão do sucesso que conquistou, atrai o interesse de muita gente que ainda habita o X/Twitter. Suas publicações são curtas, praticamente aforismos, levando a fios intermináveis de usuários lutando para ver quem faz a melhor (ou mais profunda, mais virtuosa, mais sagaz) interpretação do conselho.
O aforismo da vez foi “UI is pre-AI”, que pode ser traduzido como “interfaces com o usuário (IU) são pré-inteligência artificial (IA)”. O tweet contava com mais de 400 comentários quando terminei de escrever este texto.
Nos parágrafos que se seguem, tentarei fazer quase o mesmo que meus conterrâneos de X/Twitter, porém sendo explícito quanto à minha capacidade (e de qualquer outra pessoa) de estar certo quanto ao que Naval quis dizer:
- Eu só posso considerar a sentença em si mesma como base da análise: trata-se de uma cadeia de símbolos cujos significados podem variar conforme as experiências prévias do leitor, o momento histórico, os consensos científicos (p.ex., o que é uma interface, o que é IA, o que é ser pré-IA e assim por diante).
- Naval não faz referência a nada, não cita fontes ou evidências que apoiem sua afirmação.
- A sentença, e as demais que a precederam na conta de Naval, têm senso prático (eventualmente moral) e levam o leitor a refletir e avaliar suas próprias ações, tendo a sabedoria, competência e sucesso (presumidos) do influenciador como parâmetro.
Em suma, quem concorda com Naval deve ter em conta os pontos acima. Dito isso, vamos aos erros.
Obs.: os números entre colchetes indicam sugestões de leituras ao final do texto.
1. IU não é pré-IA: o sentido da interface
Interface não é o mesmo que interface digital e, ainda que fosse, o argumento estaria errado. Interfaces são o domínio da atividade humana que entendemos por “design” e dizem respeito a toda e qualquer prática nossa que introduz um instrumento (ferramenta ou signo) que cria oportunidades para a realização de ações [1] por um usuário – a famosa “affordance” [2]. A parte mais importante não é o “U” da sigla, mas o “I”: para designers, nem faz sentido falar de um sem o outro. Foi o mundo da engenharia e dos negócios que precisou aprender que interfaces implicam usuários [3]. Nós, designers, inventamos isso.
A interface é uma relação, não uma coisa [4], em certa medida estável e que se perpetua no tempo e no espaço, desde que sua identidade se mantenha coerente [5]. Essa coerência depende da adequação entre o contexto e os agentes envolvidos, no sentido mais amplo do termo: a antropometria, a biomecânica, a postura, o funcionamento cognitivo (individual e distribuído), as questões produtivas, políticas, jurídicas, morais, éticas... Tudo isso se materializa na relação que define a interface.
Assim, uma tomada oportuniza interfaces, assim como canetas, mesas de jantar, sinais de trânsito, aviões, pontos de contato de marcas, diagramas de serviços, linguagens (não só a verbal, mas lógica, matemática, programação), interfaces gráficas com o usuário (GUIs) e, obviamente, inteligências artificiais de qualquer geração e classe.
Se podemos falar que IUs são alguma coisa quanto às IAs, é que são mais uma instância daquela relação. Os evangelistas da IA raramente mencionam que parte importante do sucesso dos papagaios estocásticos [6] que viabilizam o funcionamento dos chatbots se deveu à oferta de interfaces que democratizaram o acesso àqueles serviços. IAs estão disponíveis há mais tempo, embora nos porões das universidades e empresas, confinadas a terminais hostis (leia-se prompt de comando ou shell) ou linguagens de programação e ambientes dominados por programadores e pesquisadores (LISP, Prolog, C, Python, R...). Embarcar grandes modelos de linguagem em interfaces com o usuário na Web ou em aplicativos para celulares permitiu que qualquer leigo pudesse explorar as possibilidades – uma relação nova, não uma coisa nova.
Absolutamente nenhuma tecnologia era novidade na oferta do Chat GPT via Web no final de 2022 e foi exatamente por isso que deu certo: a maioria dos usuários de dispositivos computacionais conhecia aspectos importantes da relação proposta, tais como acessar sites ou abrir apps, digitar coisas em caixas de texto, rolar pelo histórico da conversa, subir arquivos e assim por diante. Também podemos incluir nessa relação toda a contribuição da ficção científica, da literatura e comunicação de massa, como mencionarei adiante.
2. IU não é pré-IA: o sentido da cognição
Ao sugerir que uma interface com o usuário é pré-IA, estamos assumindo que a parte que interessa da relação de uso (o “U” da sigla) se restringe à mente ou, como preferem os neuro reducionistas, ao cérebro. Os modelos de linguagem atuais estão muito distantes da cognição animal, em geral, e da humana, em especial, precisamente por serem desencarnados: ignoram o corpo como parte indissociável do desenvolvimento e funcionamento cognitivo dos seres vivos [7]. É como se a capacidade de manipular a linguagem de forma eficiente fosse suficiente para explicar e replicar a inteligência, o que nos leva à ideia de que o “uso” e a complexidade das ações que o realizam seriam secundárias – daí sugerir que interfaces com o usuário são pré-inteligência artificial.
Usar algo não é trivial. A psicologia cognitiva, uma das fontes da IA, se estabeleceu como campo autônomo investigando nossas capacidades de planejamento, de raciocínio, de tomada de decisão, da linguagem e de seus agrupamentos e funções mais elevadas, como julgamento moral, resolução de problemas, criatividade, projeto, para ficar nas mais populares. Ainda que o argumento de Naval seja que as IAs vão reduzir atritos e etapas de processos nas nossas relações com as coisas, seguiremos falando de interfaces, e de interfaces com o usuário. Podemos deixar de falar daquelas implementadas por meios digitais, mas isso apenas reforça a leitura empobrecida que Naval faz do que é uma interface.
3. IU não é pré-IA: o sentido da extrapolação das IAs
Mesmo que os usuários das interfaces do futuro sejam as próprias IAs ou outras máquinas, em vez de seres humanos (eis que surge a ficção), não obstante lidaremos com a relação que descrevi nas seções anteriores e teremos os seres humanos como parâmetro da análise, seja por estarem envolvidos na relação, seja por terem concebido os artefatos que a efetivam.
Até possíveis extrapolações das capacidades das IA nos levam a cenários como os da Matrix, em que máquinas projetam a si mesmas e, ora vejam só, ainda dependem de interfaces com a espécie humana.
Muitos profissionais, incluindo designers, estão incorporando IAs em suas rotinas de trabalho, desde as tarefas preditivas e de classificação, não tão glamorosas, até as mais recentes de geração de texto, imagens, vídeos e códigos. O que todas essas tarefas têm em comum? Respondendo e sendo insuportavelmente repetitivo: interfaces e, ainda por cima, digitais.
A possibilidade de IAs agênticas, em que uma ou mais entidades coordenadas podem analisar dados, tomar decisões e realizar tarefas permanece no domínio das interfaces. A representação desses processos é absolutamente reveladora: são modelados como fluxos de informação, com as flechas conectando unidades que ora recuperam coisas, ora transformam, ora desencadeiam ações de outras unidades.
Concepções empobrecidas podem elevar soluções tais como n8n e Model Context Protocol (MCP) a etapas do caminho rumo ao fim das interfaces, quando na verdade as fortalecem: aqueles fluxos são interfaces por excelência, em rede, articulando inúmeros instrumentos, agentes e objetivos.
Pode ser que, no futuro, tenhamos IAs que especifiquem aqueles fluxos, que elenquem e conectem agentes para atingir objetivos complexos sem nenhuma intervenção humana. No momento, trata-se de uma baita extrapolação da realidade. O que temos são indícios de uma bolha [8] que não recuperará os investimentos feitos e levará a mais decepções que revoluções.
Como futurologia não é minha especialidade, prefiro me concentrar no fato de que até mesmo possíveis ecossistemas agênticos integralmente autônomos e autogerados, ao se relacionarem com outros sistemas igualmente poderosos e independentes, estabelecerão relações típicas do domínio das interfaces.
Se nos esquecermos, por um momento, da disputa por quem tem razão e enuncia o aforismo mais marcante, para pensarmos em um mundo em que as tecnologias estão a serviço das pessoas, deveríamos sonhar com AIs que sejam (efetivamente) UIs.
Sugestões de leituras
- Bonsiepe, G. (2021). Do material ao digital. Editora Blucher.
- Gibson, J. J. (2014). The Ecological Approach to Visual Perception: Classic Edition. Psychology Press.
- Brown, T. (2008). Design thinking. Harvard Business Review, 86(6), 84.
- Gibson (2014) – capítulo 8.
- Maturana, H. R. (1975). The organization of the living: A theory of the living organization. International Journal of Man-Machine Studies, 7(3), 313-332.
- Bender, E. M., Gebru, T., McMillan-Major, A., & Shmitchell, S. (2021). On the dangers of stochastic parrots: Can language models be too big?🦜. In Proceedings of the 2021 ACM Conference on Fairness, Accountability, and Transparency (pp. 610-623).
- Série de posts no meu blog: Softskills não salvarão seu emprego: 1, 2 e 3.
- The Verge (25/11/2025): Large language mistake